Primeiro ponto -- Graça concedida a Maria na sua Concepção;
O favor mais precioso que a Santíssima Virgem recebeu da liberalidade divina foi o de ser concebida pura e sem mancha. Por um privilégio só a Ela concedido, Deus a preservou do pecado original, de que todos nascemos culpados. A qualidade de Mãe de Deus, para a qual Maria se achava destinada, exigia esta gloriosa prerrogativa. Aquela que devia dar ao mundo o Deus de toda a santidade; aquela a quem Deus tinha escolhido para ser objeto de suas complacências; aquela que devia esmagar a serpente infernal, poderia ser acaso, ainda que por um só instante, escrava do demônio, inimiga de Deus, filha da perdição e da ira? Não: isso repugnava inteiramente à sabedoria e santidade de Deus. Por esta razão. Maria foi pura, santa, imaculada desde o primeiro instante de sua existência. Sua alma formosa, cheia de bençãos e graças, enriquecida de todas as virtudes; e seu coração, destinado a ser o santuário da Divindade, nunca foi manchado pelo hálito impuro do pecado. Regozijemo-nos com a Igreja por este favor concedido a Maria; prostemos-lhe venerar e defender até a morte este privilégio admirável, que hoje se acha definido pela autoridade infalível da Igreja como irrefragável dogma de fé.
Segundo ponto -- Quanto ela estimou esta graça;
A Santíssima Virgem era Mãe de Deus, rainha dos homens e dos anjos, soberana do universo; mas a qualidade de imaculada lhe parecia mais preciosa que todas as outras porque a fazia sem dúvida mais agradável a Deus. Se lhe fora dada escolha, teria ela preferido à propria maternidade divina a vantagem de ser livre do pecado original. A mais eminente dignidade não lhe teria parecido capaz de a compensar da infelicidade de ter estado um só instante na inimizade de Deus, fora da Sua Graça. Ah! quanto não são diversos nossos sentimentos! Quantas vezes não temos nós passado dias, meses e anos inteiros em tão deplorável estado! Aprendamos hoje de nossa divina Mãe que a única coisa que devemos temer é o pecado, e que não são as qualidade do corpo, do espírito e do nascimento o que deve verdadeiramente merecer a nossa estima e apreço; mas a Graça de Deus, a virtude, a santidade, a inocência de coração.
Terceiro ponto -- Quanto fez por conservá-la.
Ainda que a Santíssima Virgem foi isenta de toda a fraqueza e inclinação para o mal; concebida com todos os privilégios da inocência e confirmada em graça por uma providência especial; contudo temia o pecado do qual, pela onipotência divina, estava perpetuamente preservada; fugia cuidadosamente de todas as ocasiões dele, conservava-se alerta e excitava uma contínua vigilância sobre os sentidos. Passava uma vida laboriosa, penitente e mortificada; fazia todos os dias novos esforços para se adiantar em perfeição. Que exemplos para nós que, longe de termos sido confirmados em graça, nascemos no pecado e com uma inclinação tão violenta para o mal! Para nós, cheios de hábitos criminosos e tão fracos na virtude, será pois de admirar que demos quedas tão frequentes e criminosas se tomamos tão poucas precauções para evitar o pecado, e se muitas vezes até parece que procuramos todos os meios mais próprios para irritar as nossas paixões?
Oração
Mãe amabilíssima de Jesus, eu me sinto deveras animado, quando na vossa imaculada Conceição vos vejo calcando o demônio aos pés. Sois a mulher forte, anunciada desde o princípio do mundo para esmagar a cabeça da infernal serpente. Esmagaste-la desde o primeiro momento de vossa existência, e sempre resististes a seus tiros envenenados. Misericordiosíssima Virgem, lançai sobre mim olhos compassivos, vede as profundas feridas que este cruel inimigo tem feito em minha alma. Ah! se eu houvera sido mais fiel em implorar o vosso socorro, não teria tantos golpes mortais! Daqui em diante, em todas as tentações, me dirigirei a Vós com humilde confiança, e espero que tereis piedade de mim, que me dareis a mão, que me alcançareis a força de combater todos os meus inimigos e que, depois de ter alcançado a vitória neste mundo, irei receber no céu a coroa da imortalidade, prometida àqueles que legitimamente combaterem.
Exemplo
Misericórdia de MariaViu-se há alguns anos, na Trapa de Sept-Fontas, um bom irmão converso, muito idoso, enfermo e enfraquecido, que nunca largava o rosário. Era o irmão Teodoro. Tinha, contudo, outrora empunhado as armas.
Era em 1812. Frei Teodoro fazia parte do grande exército que voltava vencido pelo frio. Depois de ter marchado longas horas pela neve, a coluna de Frei Teodoro, extenuada de cansaço e fome, viu-se de súbito diante de uma bateria inimiga que a atacava de frente e lhe fechava a passagem.
Apoderou-se de todos um desalento mortal: oficiais e soldados arremessavam com raiva as armas ao chão. É sabido que, em grau de prostração mortal, caíram, naquela lúgubre campanha, corpos inteiros que tinham partido tão brilhantes e altivos; alguns meses depois não apresentavam mais que uma reunião confusa de homens desmoralizados, de esqueletos ambulantes.
Nesse estado de coisas, que resolução tomar? Recuar, impossível!... Avançar, como?... Permanecer atrás das rochas, a salvo das balas? Era condenar-se a morrer de frio e inanição.
De repente adianta-se um oficial de espada em punho e, apontando para a bateria, bradou:
— A mim os bravos!Coisa rara nos fastos das nossas guerras, nenhuma voz respondeu ao chamamento da honra. Nenhuma! Engano-me; um homem, um só homem, Frei Teodoro, saiu das fileiras e se ofereceu nestes termos:
— Irei eu só, se quiser!Dizendo isso, deita ao chão a mochila e pousa a espingarda, ajoelha-se na neve, faz o sinal da cruz diante de todos os seus companheiros de armas, que não pensavam em sorrir, e reza o Pai-Nosso, Ave-Maria, Creio em Deus e o Ato de Contrição com mais fervor que nunca. Torna a pegar na arma, arroja-se a passo acelerado e avança, de cabeça baixa, com tanta segurança como se tivesse dez mil homens atrás de si, dez mil homens.
Ia alcançar a bateria. O inimigo, atônito, crendo num estratagema — que os franceses retiravam com o plano de rodeá-lo enquanto se ocupava com um só homem — abandona as peças e as bagagens e foge.
Senhor do campo de batalha, diz o novo herói com admirável candura e imperturbável sangue frio:
— Eis como é bom orar ao Todo-Poderoso e à Virgem quando a gente quer sair de apuros.O oficial, num movimento de entusiasmo de que de boa vontade se participa, corre ao encontro dele, arranca a própria cruz de honra e a põe ao peito do mancebo, clamando com lágrimas nos olhos:
— Meu bravo, tu a mereceste mais do que eu!Frei Teodoro respondeu:
— Comandante, não fiz mais que o meu dever!Absolutamente como cinquenta anos depois, sob o burel de trapista, quando passava meios dias de joelhos pelo mais rigoroso frio, e rezando sempre as suas contas, não fazia também senão o seu dever.
Outro exemplo
Certa senhora, escrevendo ao diretor da Arquiconfraria do Santíssimo Coração de Maria, em Paris, lhe participava a conversão de um mancebo de 28 anos de idade, e depois de descrever a péssima educação que ele havia recebido de seu ímpio pai, e os excessos a que se entregara — que o haviam arrastado à beira da sepultura — e o motivo pelo qual ela se encarregou de seu tratamento, passou a relatar sua conversão:
"O que primeiro me lembrei", diz ela, "foi da pouca religião deste rapaz, e insisti com ele para que se fizesse inscrever na Arquiconfraria, e pedisse assim a Deus a sua cura. O pobre mancebo anuiu de boa vontade às minhas instâncias, confessou-se, recebeu a medalha e a carta de admissão com visível satisfação; mas, passados alguns meses, vendo que o mal crescia, caiu em uma espantosa desesperação, recusando toda a consolação religiosa, blasfemando contra Deus, amaldiçoando a própria existência. Seu pai, mais ímpio do que nunca, vinha mantê-lo nesses terríveis pensamentos, prometendo-lhe, quando mais perto, suicidar-se! As blasfêmias, as mais espantosas ameaças, eis o que eu ouvia.
Verdadeiramente assustada com essa espécie de entrega ao inferno, resolvi-me a escrever-vos, pedindo-vos com insistência as orações da Arquiconfraria, e celebrou-se uma missa em Nossa Senhora das Vitórias, a 2 de outubro.
No domingo e na manhã de segunda-feira, ficou o doente mais triste; mas às três horas da tarde mandou ele mesmo procurar o pároco, confessou-se e declarou em público todos os seus erros. Interrogado pelo pároco se acreditava em Jesus Cristo, respondeu em alta voz:
— Acredito e tenho na Santíssima Virgem a maior confiança.Desde então conservou-se tranquilo e sossegado, e continuou a trazer sua medalha.
Apesar da enfermidade, desde 4 até 16 de outubro sofria o doente muito de noite e de dia, com paciência. No sábado, às 10 horas da manhã, ao escutar sua irmã, no leito exclamou:
— Meu pai, a senhora não lhe deu dois rosários, um para si, outro para mim? Por que razão não mos mostra ao menos?O pai respondeu:
— Meu filho, a senhora nada me deu.— Certamente que sim — replicou o doente com tenacidade.
Esse diálogo, travado entre o pai e o filho, agitava sobremaneira a este. A mãe quis terminar a discussão e disse ao marido:
— Vai depressa ao castelo e pede um rosário à senhora, para o contentar.O pai partiu, e uma jovem irmã, que estava junto do doente, lhe disse:
— Se queres o meu rosário, eu te dou.E indo buscá-lo, entregou-lho.
— Ah! Como o teu rosário está maltratado! — replicou ele. — Nem cordel tem! Mas é o mesmo. Põe-no ao pescoço.Levantou a cabeça; sua irmã lhe passou o rosário, e ao deitar-se e suar depois na almofada, deu o último suspiro.
Chamado para ver, o pai correu à sua casa e, logo ao entrar, viu o mancebo com o rosário ao pescoço e sorriso nos lábios, adormecido para sempre...
É este um caso, senhor pároco, do qual sou testemunha ocular. Esta morte deu ocasião para que a religião entrasse no coração do pai! O senhor pároco remeteu-me três rosários; dei um à filha, outro à mãe e, oferecendo o terceiro ao pai, em presença do corpo de seu filho, animei-me a dizer-lhe:
— Vistes como ele acabou? Acreditai-me: aqui tendes o meio de o ir acompanhar. Tomai-o.Todo trêmulo e hesitante, o pobre velho estendeu a mão e recebeu esse sinal de bênção. Chorou muito a morte de seu filho, mas a sua dor era sossegada e pacífica. Desde esse tempo sua conduta é irrepreensível, tendo-se convertido e morrido cristamente.
Lição -- Sobre a Graça divina.
Alma cristã, recebeste no batismo a graça santificante, que Maria recebeu no primeiro instante de sua concepção.
Esta graça te deu o direito de chamar pai a Deus e a Jesus Cristo irmão; foste constituído herdeiro de Deus e co-herdeiro de Jesus Cristo, e o reino do céu te foi destinado.
Entendes bem toda a excelência destes gloriosos privilégios? E entendes também as obrigações que eles te impõem?
Oh! quão poucos cristãos há que façam nisto reflexão, e que se esforcem por sustentar a dignidade de sua elevação com a santidade de suas ações.
Quão poucos há que trabalhem por conservar a escola da inocência, símbolo da candura, da pureza e da piedade de filhos de Deus!
Fazem vanglória das fortunas do mundo e, com desordenado modo de pensar, no seu espírito ocupa o último lugar a graça, que, rigorosamente falando, é quem merece toda a estimação. Correm ansiosos no alcance dos bens e heranças da terra, e descuidam-se, e até desprezam, em certo modo, a eterna herança dos bens celestiais.
Almas ingrata, desgraçadas vítimas do pecado, ah! ao menos não endureçais o coração à voz divina, que vos desperta!
Ainda vos resta segundo batismo em que recobreis a graça da adoção que tendes perdido: é o da penitência.
Recorrei a ele confiada e siceramente; o Pai celeste nada deseja com tanta ânsia, que restituir-vos a Sua amizade; porém recorrei a ele sem demora, talvez que só passado pouco tempo não o possais fazer.
Máxima espiritual
"A alma sem a graça tem o nome de viva e na realidade está morta."
Sto. Afonso Maria de Ligório